Ao amanhecer do
sexto dia de nossa partida do Rio Pardo, resolvemos prosseguir a viagem subindo
a Serra Geral pela estrada de rodagem que atravessa a emancipada colônia alemã
do Pinhal.
Em vez dessa e
da estrada moderna denominada da Caturrita, poderíamos ter seguido (como uma
vez fizemo-lo, por precisarmos ir a São Martinho) pela utra-secular Picada da
Boca do Monte.
Passaríamos pelo
assaz deserto arraial do Campestre, onde estacionou o Ermitão João Maria, de
quem daremos sucinta informação, porque a narrativa de uma viagem admite (e às
vezes agradam) certas digressões.
Desse misterioso
e desaparecido personagem, que tanto deu que falar de si e do seu eremitério
conseguimos saber o seguinte:
Era italiano mas
residiu, dizia ele, em São Paulo donde retirou-se enveredando por ínvias[1]
selvas (quem sabe por quantos meses de arriscada peregrinação) até a fronteira
do Paraguai. Daí foi obrigado a sair.
Atravessou o rio
Paraná, depois a Lagoa Iberá, em uma pequena canoa; seguiu a pé pelo território
deserto das Missões Corrientinas até o extinto povo de São Tomé, hoje
restaurado e elevado a cidade. Desceu pelo Uruguai até São Borja onde
desembarcou e foi bem acolhido. Deu aí o nome de João Maria de Agostini.
Em poucos dias
recomeçou sua peregrinação a pé e foi dar com mais de 580 quilômetros de marcha
ao Cerro de Botucaraí, onde pouco demorou-se e regressou até o Campestre, perto
de Santa Maria por onde já havia passado.
Nessa situação
agreste e merencória[2],
escolheu um Cerro elevado e à base deste, uma fonte de água cristalina à qual
atribuiu a virtude de curar inúmeras enfermidades.[3]
Não era a
primeira vez que no Brasil se descobriam fontes de águas puras com virtudes
semelhantes e que, como essas outras, as do Campestre operariam curas
surpreendentes.
Após alguns
sucessos reais ou aparentes, após uma boa colheita de esmolas, o ermitão
resolveu, auxiliado por alguns devotos, levantar no alto do Cerro, uma ermida e
nesta foi colocada uma imagem de Santo Antão, abade de Tebaida, imagem que
existia em poder de um morador do lugar e fora pertencente aos povos das
Missões.
(...)
O ermitão João
Maria de Agostini não se limitou a construção da ermida.
Para a festa do
dia próprio (17 de janeiro) cuidou da construção de uma capela, em lugar plano,
à base do Cerro.
Sendo necessário
um patrimônio para sustentação da capela, um cidadão por nome Jezuino de Tal
doou de suas terras duzentas braças de frente sobre mil de fundo. Para essa,
apenas mais espaçosa capela, é trasladada, no dia da primeira novena, a imagem
do padroeiro e aí permanece até o dia da festa, finda a qual é reconduzida, em
procissão, para a tristonha ermida no cimo do Cerro.
No tempo do
ermitão, a festa não teria o aparato religioso nem o profano da atualidade,
mesmo porque ele, o coitado, teve que deixar o Campestre, fugindo perseguido
pela polícia, sem que se soubesse outras notícias dele.
Todos os anos,
durante os dias consagrados à festa, concorre de muitos pontos do Estado (e até
do estrangeiro) crescido número de romeiros, que formam em barracas, carretas e
outros veículos um grande acampamento. Contaram-se mais de cinco mil pessoas no
ano de 1906, um dos em que menos concorrida foi a romaria, por causa das
copiosas chuvas.
É certo que
alguns homens lá vão, sem o espírito religioso, mas só pelo prazer de observar
o movimento dos romeiros, acompanhar as distribuições dos pagodistas e com
estes gastar o tempo em descantes, folgares e libações.
FONTE:
SILVEIRA, Hemetério
José Velloso da. As Missões Orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre:
Estante Rio-Grandense União de Seguros – ERUS, 1979. p. 156-162.
[1] Impenetráveis
[2] Melancólica
[3] Em execução a lei provincial de 18/7/1848 mandou o
Presidente do RS uma comissão de médicos e farmacêuticos examinar as águas
milagrosas do Campestre. Feito um exame clínico, não mostraram propriedades
medicinais nem mirificas (admiráveis).
Isto não tem impedido o povo de continuar a usá-la como uma panacéa
sobrenatural.
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