Marcos Faerman
Era
a cidadezinha antiga, eu e meu pai nas suas ruas pequenas nós agora estamos subindo
eu as calças curtas subindo uma elevação verde, uma montanha em meus olhos meninos.
Montanha em meus olhos meninos naquele sol forte amarelo na velha fortaleza destruída
o forte de Jesus Maria José de minha infância o forte onde bombardeamos, nós da
gloriosa Rio Pardo, bombardeamos todos os navios espanhóis que desafiavam a
nossa bravura.
E
eu morto de raiva de estar ali apenas caminhando com aquele rapaz e meu pai e
não de ser um bravo de bota lutando contra os espanhóis lutando naqueles navios
feitos de velas movidos a vento.
Navios na tempestade. Aqueles navios
velhos que nem navio de filme de pirata que eu via aos domingos no cinema
Coliseu, bem na primeira fila eu arrumadinho por minha mãe na primeira fila, caminhando
muito por todo o cinema e vendo aquele filme amarelo de piratas.
E
tinha aquela história triste que meu pai contava jovem naquela sala escura, as
velas, tinha velas. As velas perto da cara moça de meu pai, minha mãe, tomara
que nunca morram meus irmãos também na sala escura.
E
a história do peixinho. O peixinho ia longe de casa, tubarão comia. Mãe do peixinho
chorava (eu chorava), pai de peixinho salvava o peixinho, dava purgante para o tubarão
que cagava o peixinho. Eu chorava no
meio daquelas velas olhando a cara grande de meu pai: como era de gostar.
E
aí aprendi – eu menino aprendi – que era Judeu, que matei Cristo Nosso Senhor
Criador, filho de Deus. Eu, um menino judeu em Rio Pardo. E fui correndo para
casa, chorei como depois correria, chorando na calçada da rua João Pessoa,
vendo a nossa casa, a loja de meu pai queimar.
Eu vi. Meu pai sentado na frente de nossa casa, tudo queimando, e as
pessoas todas vendo o judeu chorar, o judeu que bem podia ter posto fogo na loja,
só para ganhar o seguro – estes estrangeiros são capazes de tudo, não é?
Eu,
menino, a freirinha, cara branca, roupa branca, tão branca Meu Deus, Mãe, não
senhora, não quero ser católico. O que é que iam dizer lá em casa, a senhora
entende, não é? Minha mãe não entendeu quando
um ano depois ela soube que eu dizia no Colégio que era Católico minha mãe não
sabia o que era ficar sentado, olhando para as paredes, enquanto todos os
meninos de jardim da infância, do Grupo Escolar Ernesto Alves, um colégio
grande amarelo, do Ginásio Nossa Senhora Auxiliadora, onde Getúlio estudou ali
naquela sala, vejam, do Colégio Estadual
Júlio de Castilhos, vejam, todos os meninos estão rezando estão olhando para a
minha cara de grande filho da puta (assassino do Cristo deles).
A
doida visão
Eu
Queimando
No
meio das chamas
Do
inferno
A
doida visão eu aprendendo nas aulas de minha infância que eu matei nosso senhor
Jesus Cristo deus de todas aquelas crianças. Eu matei o Deus delas, eu, meu
pai, da loja para todos, minha mãe, todos nós; elas querem me matar? Vou rezar
à noite, escondidinho de minha mãe. Sem eles saberem de nada, não serei mais
judeu, não. Vou rezar à noite, a cara cheia de medo, vou acordar no meio da
noite, vou me ajoelhar e enganar todos eles, até Ele. Ele no meio da noite como
Ele vai saber que sou apenas uma criança judia fingindo de Cristão rezando de Cristão
sentado na cama do meio da noite? Por isso estou rezando naquele quarto que
depois iria queimar no meio da noite estou rezando e inda há os fantasmas eu
meio menino chorando em minha cama chorando no meio dos fantasmas. Os mortos estão comigo (é
meia-noite, ouvi direitinho as doze batidas do relógio) e os mortos passeiam na
grande casa colonial. Se eu colocar os
pés fora da cama coitadinho de mim, eles colocam a mão gelada em meus pés, eles
puxam os meus pés, quem me contou foi dona Odósia, a cozinheira e ela sabe de
tudo isto ela mora bem pertinho do cemitério.
Dona
Odósia contava tudo para mim: na cozinha, na grande casa colonial, na cozinha
que dava para a grande figueira, para um grande mato. Ela sabia. Ela apontava
com sua grande unha que nem sei se existiu mas que para mim existiu ela
apontava para o pátio e mostrava com sua grande unha suja uma parede e ali
estava enterrado um escravo morto talvez sepultado vivo com seus gritos com sua
pele preta com suas correntes. Foi enterrado
bem ali naquela pedra grande. (Na rua era escuro e nunca fui à noite naquele
pátio escuro sujo lindo onde brincava quando dia.) À noite até a grande
figueira conversava com as outras árvores, seu corpo vivo. Eu ouvia aquela
figueira, seu imenso corpo movimentado pelo vento seus braços seu tronco sua
voz
Vento
na noite
Fantasmas
soltos no mato
O
velho escravo
Sepultado
na laje imensa,
Perto
de uma fossa.
E
os fantasmas que viviam no porão, o imenso porão de minha infância cheio de morcegos
que fumavam cheio de fantasmas de velhas caixas de brinquedos de crianças
mortas roupas velhas das gentes que tinham morrido aquele imenso porão cheio de
caras escondidas – caras de mortos – cheio de brinquedos escondidos, aquele
imenso porão feito de tijolos vermelhos e de memórias, o sol que se infiltrava
no meio de suas paredes grandes cheias de memórias e onde estavam sepultados os
risos de todas aquelas crianças como seus brinquedos a perna de uma boneca a
cabeça cortada um pouco de algodão de um velho elefante gordo um tesouro e
espelho quebrado onde alguém colocou sua cara viva –
agora só cruzes? E os fantasmas colocavam suas mãos geladas em nossos
pés no meio da noite.
E
na casa do lado? Está vendo aquele porão, apontava aquela unha suja, comprida,
quebrada: naquele porão morreu de suicídio, a moça que ia casar. Briga de
enxoval. Ela ia casar, deu briga de enxoval com a irmã. O fantasma da moça agora vem sempre aí.
Marcos
Faerman nasceu em Rio Pardo em 5 de abril de 1943 e morreu em São Paulo em 12
de fevereiro de 1999. No final dos anos 1950 transferiu-se para Porto Alegre e
em 1968 foi para São Paulo. Foi jornalista de renome nacional. Ele se definia
como “repórter, judeu, gaúcho, gremista e marxista”
REFERÊNCIA: Anuário de Jornalismo: Revista da
Coordenadoria do Curso de Jornalismo – Faculdade
de Comunicação Social Cásper Líbero – Ano 1 – No 1, 1999, pp. 135-138.
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