domingo, 14 de janeiro de 2018

EU MENINO

Marcos Faerman
Era a cidadezinha antiga, eu e meu pai nas suas ruas pequenas nós agora estamos subindo eu as calças curtas subindo uma elevação verde, uma montanha em meus olhos meninos. Montanha em meus olhos meninos naquele sol forte amarelo na velha fortaleza destruída o forte de Jesus Maria José de minha infância o forte onde bombardeamos, nós da gloriosa Rio Pardo, bombardeamos todos os navios espanhóis que desafiavam a nossa bravura.
E eu morto de raiva de estar ali apenas caminhando com aquele rapaz e meu pai e não de ser um bravo de bota lutando contra os espanhóis lutando naqueles navios feitos de velas movidos a vento.
Navios na tempestade. Aqueles navios velhos que nem navio de filme de pirata que eu via aos domingos no cinema Coliseu, bem na primeira fila eu arrumadinho por minha mãe na primeira fila, caminhando muito por todo o cinema e vendo aquele filme amarelo de piratas.
E tinha aquela história triste que meu pai contava jovem naquela sala escura, as velas, tinha velas. As velas perto da cara moça de meu pai, minha mãe, tomara que nunca morram meus irmãos também na sala escura.
E a história do peixinho. O peixinho ia longe de casa, tubarão comia. Mãe do peixinho chorava (eu chorava), pai de peixinho salvava o peixinho, dava purgante para o tubarão que cagava o peixinho.  Eu chorava no meio daquelas velas olhando a cara grande de meu pai: como era de gostar.
E aí aprendi – eu menino aprendi – que era Judeu, que matei Cristo Nosso Senhor Criador, filho de Deus. Eu, um menino judeu em Rio Pardo. E fui correndo para casa, chorei como depois correria, chorando na calçada da rua João Pessoa, vendo a nossa casa, a loja de meu pai queimar.  Eu vi. Meu pai sentado na frente de nossa casa, tudo queimando, e as pessoas todas vendo o judeu chorar, o judeu que bem podia ter posto fogo na loja, só para ganhar o seguro – estes estrangeiros são capazes de tudo, não é?
Eu, menino, a freirinha, cara branca, roupa branca, tão branca Meu Deus, Mãe, não senhora, não quero ser católico. O que é que iam dizer lá em casa, a senhora entende, não é?  Minha mãe não entendeu quando um ano depois ela soube que eu dizia no Colégio que era Católico minha mãe não sabia o que era ficar sentado, olhando para as paredes, enquanto todos os meninos de jardim da infância, do Grupo Escolar Ernesto Alves, um colégio grande amarelo, do Ginásio Nossa Senhora Auxiliadora, onde Getúlio estudou ali naquela sala, vejam,  do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, vejam, todos os meninos estão rezando estão olhando para a minha cara de grande filho da puta (assassino do Cristo deles).
A doida visão
Eu
Queimando
No meio das chamas
Do inferno
A doida visão eu aprendendo nas aulas de minha infância que eu matei nosso senhor Jesus Cristo deus de todas aquelas crianças. Eu matei o Deus delas, eu, meu pai, da loja para todos, minha mãe, todos nós; elas querem me matar? Vou rezar à noite, escondidinho de minha mãe. Sem eles saberem de nada, não serei mais judeu, não. Vou rezar à noite, a cara cheia de medo, vou acordar no meio da noite, vou me ajoelhar e enganar todos eles, até Ele. Ele no meio da noite como Ele vai saber que sou apenas uma criança judia fingindo de Cristão rezando de Cristão sentado na cama do meio da noite? Por isso estou rezando naquele quarto que depois iria queimar no meio da noite estou rezando e inda há os fantasmas eu meio menino chorando em minha cama chorando no meio dos  fantasmas. Os mortos estão comigo (é meia-noite, ouvi direitinho as doze batidas do relógio) e os mortos passeiam na grande casa colonial.  Se eu colocar os pés fora da cama coitadinho de mim, eles colocam a mão gelada em meus pés, eles puxam os meus pés, quem me contou foi dona Odósia, a cozinheira e ela sabe de tudo isto ela mora bem pertinho do cemitério.
Dona Odósia contava tudo para mim: na cozinha, na grande casa colonial, na cozinha que dava para a grande figueira, para um grande mato. Ela sabia. Ela apontava com sua grande unha que nem sei se existiu mas que para mim existiu ela apontava para o pátio e mostrava com sua grande unha suja uma parede e ali estava enterrado um escravo morto talvez sepultado vivo com seus gritos com sua pele preta com suas  correntes. Foi enterrado bem ali naquela pedra grande. (Na rua era escuro e nunca fui à noite naquele pátio escuro sujo lindo onde brincava quando dia.) À noite até a grande figueira conversava com as outras árvores, seu corpo vivo. Eu ouvia aquela figueira, seu imenso corpo movimentado pelo vento seus braços seu tronco sua voz
Vento na noite
Fantasmas soltos no mato
O velho escravo
Sepultado na laje imensa,
Perto de uma fossa.
E os fantasmas que viviam no porão, o imenso porão de minha infância cheio de morcegos que fumavam cheio de fantasmas de velhas caixas de brinquedos de crianças mortas roupas velhas das gentes que tinham morrido aquele imenso porão cheio de caras escondidas – caras de mortos – cheio de brinquedos escondidos, aquele imenso porão feito de tijolos vermelhos e de memórias, o sol que se infiltrava no meio de suas paredes grandes cheias de memórias e onde estavam sepultados os risos de todas aquelas crianças como seus brinquedos a perna de uma boneca a cabeça cortada um pouco de algodão de um velho elefante gordo um tesouro e espelho quebrado onde alguém colocou sua cara viva  –  agora só cruzes? E os fantasmas colocavam suas mãos geladas em nossos pés no meio da noite.
E na casa do lado? Está vendo aquele porão, apontava aquela unha suja, comprida, quebrada: naquele porão morreu de suicídio, a moça que ia casar. Briga de enxoval. Ela ia casar, deu briga de enxoval com a irmã.  O fantasma da moça agora vem sempre aí.

Marcos Faerman nasceu em Rio Pardo em 5 de abril de 1943 e morreu em São Paulo em 12 de fevereiro de 1999. No final dos anos 1950 transferiu-se para Porto Alegre e em 1968 foi para São Paulo. Foi jornalista de renome nacional. Ele se definia como “repórter, judeu, gaúcho, gremista e marxista”


REFERÊNCIA:  Anuário de Jornalismo: Revista da Coordenadoria do Curso de Jornalismo  – Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero – Ano 1 – No 1, 1999, pp. 135-138.

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