2ª Parte
O requerimento das mesmas havia sido feito ainda na época em
que o conde da Figueira governava a capitania (1818-1821). Mas, entre 1834 e 1835,
Elautério Rodrigues Lima requereu uma
medição e demarcação do terreno dos ervais, “vindo ele ficar Sr. de todos eles,
porque se lhes mediram três léguas de matos que abrangeram todos aqueles ervais
e até o mesmo que se lhe havia comprado para essa aldeia em 1825”. Havia a
justificativa de que os cofres provinciais e mesmo os índios, não dispunham de
recursos para pagar as despesas feitas com os engenheiros que mediam os
terrenos. Apesar disso, a medição acabou sendo efetuada e os índios trabalharam
nos ervais por cerca de três anos, sem que Elautério Rodrigues Lima se
opusesse. Quando ele requereu a posse e o uso daquelas terras apenas para si, o
vice-presidente da província mandou proceder a reivindicação daqueles ervais
por meios judiciais, através da promotoria pública. Isto embargou o trabalho
dos índios e atrasou a produção “por falta de meios para semelhantes despesas,
e por este motivo, não se tem feito erva alguma”.
No entanto, a medição das terras dos ervais não era a única
dificuldade que eles enfrentavam para manter as atividades de produção da
erva-mate. Tentativas de arrendar outras terras para continuar com a produção
foram frustradas, motivo pelo qual, “veem-se os naturais do Brasil, primários e
senhores de tão grandes matas sem terras onde fabriquem uma arroba de erva-mate
para seu consumo”, de acordo com o diretor do aldeamento. À medida que as
terras dos ervais eram vendidas ou
apropriadas por particulares, políticos e militares, como veremos adiante, as
condições dos guaranis de São Nicolau do Rio Pardo ficavam mais difíceis. As
tentativas de tomada de suas terras
foram muitas e causaram confusões envolvendo a posse das mesmas pelos índios.
Por outro lado, parecia haver outras maneiras de continuar nas atividades com a
erva-mate, como nos dá indícios o relato do padre Ambros Schupp, escrito no ano
de 1875 (SCHUPP,2004, p. 106). Segundo ele, a zona de planalto, ao norte de um
dos afluentes do Rio Pardo, era “povoada por brasileiros, ocupado-se do cultivo
de ervais(erva do Paraguai)e a fabricação da erva-mate. São conhecidos como
ervateiros ou carijeiros, e o produto de seu trabalho é a erva-mate… A zona de
planicie, ao sul, se mostrava prospera, pois era ocupada por alemães. O padre
fez uso do clima e da geografia do terreno para estabelecer diferenças étnicas
e nacionais entre pessoas com diferenças culturais, um discurso típico para uma
época em que a experiência humana podia ser compreendida a partir de escalas
evolucionistas ligadas a uma seleção que a própria natureza era capaz de fazer
do seres humanos, daí a relação entre clima e cultura. Uma diferença entre
brasileiros/ ervateiros/ carijeiros e alemães foi estabelecida tendo como
parâmetro o produto da atividade agrícola `a qual se dedicavam naquele
território. O uso do termo carijeiros é interessante quando levamos em conta
outros usos já feitos do etnônimo carijó no passado( MONTEIRO, 1994,p. 165):
Originalmente,
desde meados do século XVI, o etnônimo carijó referia-se aos guarani em geral,
objeto principal tanto dos paulistas apresadores de escravos, quanto dos
missionários franciscanos e jesuítas da América espanhola e portuguesa.
Até 1640, a sociedade paulista foi marcada profundamente pela chegada de um
fluxo constante de cativos guarani, provenientes sobre tudo do sertão dos Patos
e do Guairá.
Segundo John Manuel
Monteiro, a introdução do termo carijó no século XVI pode estar relacionada com
estratégias de padronização de
populações a partir do modelo do cativo guarani.Tais padronizações vinculadas
ao uso de uma categoria étnica refletem táticas políticas e “ um processo
histórico envolvendo a transformação de índios em escravos” (MONTEIRO,1994, p.
166).É claro que o contexto onde o padre Schupp fez uso do termo carijeiros era
bem diferente, entretanto, pode ser que as terminologias de carijeiros e
ervateiros também apontassem para a reconstituição de uma identidade indígena.
Este contexto em que os índios foram vistos como “mestiços” ou “misturados”
coincide com o momento em que a sua extinção e a de seus aldeamentos era tomada
como inevitável, além de imprescindível para que pudesse haver o loteamento das
terras para outros grupos sociais. Na pluma do padre Ambros Schupp, na zona
habitada por alemães, reinavam o trabalho e o “empenho em promover a cultura”.
Em contrapartida, na área habitada por indígenas, as pessoas viviam em
choupanas miseráveis”(SCHUPP,2004, p. 107):
Comem quando tem alguma coisa e sabem passar fome quando de
nada dispõem. Divertem-se com as carreiras e os fandangos. Em sociedade
circulam a cuia e a bomba com chimarrão fervente. Não sentem necessidades
religiosas, suas capelas não passam de choupanas de tábuas, através das quais
assobia o vento.
A presença de guaranis no vale do Rio Pardo e o processo
histórico de construção das suas identidades estiveram ligados à produção de
erva-mate e a presença dos alemães. Além disso, mesmo de maneira enviesada, os
índios aparecem como lavradores no cultivo da erva-ervateiros, no relato do
pároco. Todavia, os guaranis se relacionaram não apenas com colonos alemães,
mas como outros indígenas, como os Coroados. A zona alta à qual o padre se
refere é a região da serra do Botucaraí. A picada do mesmo nome ligava a cidade
de Rio Pardo à região de Passo Fundo, onde ficavam os aldeamentos de Nonoai e
Guarita. Diversos tipos de contato aconteciam entre esses aldeamentos. Em 1850,
por exemplo, o diretor de Nonoai e Guarita informaram ao presidente da
Província que conhecia bem as vantagens que se poderia tirar dos ditos
aldeamentos. Afirmou que não seriam a Companhia de Pedestres ou a de polícia
que iriam impor “respeito aos índios”, mas sim quem os ensinasse “a trabalhar
na lavoura e fábrica de erva-mate”. Ou seja, indígenas Coroados aprendiam a
cultivar a erva justamente no momento em que as disputas de terra em São
Nicolau do Rio Pardo ficaram acirradas e os guaranis praticamente haviam
perdido os ervais, possibilitando contatos e trocas e saberes entre os índios
de Guarita, Nonoai e São Nicolau do Rio Pardo.
Ponto importante a ser observado na formação das identidades
étnicas nesse período é que grande parte das ações dos índios guaranis indicam
que a reivindicação de seus direitos tenha sido feita com base no acionamento
de uma identidade coletiva, a de índios aldeados (ALMEIDA, 2005, p.237). Os
usos que fizeram dos espaços dos aldeamentos podem ter sido muito variados.
Neste caso específico, a própria condição de “índio aldeado” pode ter se
apresentado como uma possibilidade de continuar com as atividades ligadas ao
cultivo e à produção da erva-mate. Tal condição pode ter sido acionada em
momentos críticos como algo representativo de sua própria identidade, já que
dela prescindiam para serem diferenciados dos demais “nacionais”, estrangeiros
e indígenas. O que quero sugerir é que, num momento em que suas terras estavam
sendo usurpadas e, por vários motivos, os índios estavam sendo impedidos de
prosseguir nas atividades com a erva-mate, a condição de aldeados pode ter se
apresentado como uma alternativa viável, mesmo que implicasse na ida provisória
de guaranis para um aldeamento de caroados. Esses contatos não eram exatamente
o que se pode chamar de uma novidade para os índios. De acordo com Jean
Batista, “povoados missionais foram compostos por uma diversidade de grupos
étnicos significativos na geração, desenvolvimento e complexidade daquela experiência”.
(BAPTISTA, 2009, p.226).
É necessário reconhecer, ainda de acordo com o autor, a “diversidade
como característica fundamental daquele processo em conjunto à avaliação de
significativas transformações identitárias oriundas do contexto” (BAPTISTA, 2009,
p.226).
|
Pés de erva com flores |
FONTE: Na Fronteira do Império, política e sociedade na Rio
Pardo oitocentista. Melo Karina Moreira Ribeiro da Silva e. EDUNISC, 2018, p.15/19.