DE PORTO ALEGRE A CRUZ ALTA
“Tenha paciência o leitor que só
conhece esta era de progresso. Compartilhe e experimente conosco os sofrimentos
e emoções na extensa peregrinação desde Capital rio-grandense até obter
descanso definitivo, ou duradouro, numa povoação, numa estância da região
serrana, ou abaixo desta, na extensa campanha até a fronteira com os países
vizinhos.
A viagem para qualquer desses
rumos, fazia-se em alguns dias, suportando o trote duro do animal. Mais penosa era-o,
durava um mês ou mais, esgotaria a paciência dum santo, quando feita com
família, acompanhando as antiquadas carretas puxadas por quatro juntas de bois.
E o que diremos dos pobres
carreteiros, condutores dos fardos de mercadorias, quando eram remetidas de Rio
Pardo para os comerciantes da campanha, com uma dúzia desses pesados veículos?
Nos dias de chuva, eram
obrigados a permanecer no lugar, onde houvessem passado a noite, esperar o
tempo seco, porque de outro modo inutilizariam a boiada de trabalho. As cangas,
os canzis tirar-lhes-iam todo o pelo molhado[1]
quer do pescoço, quer da nuca, abrindo feridas de curativo difícil.
Para evitar esse prejuízo, não
pequeno, tinham os pobres carreteiros de passar três, quatro ou mais dias,
lutando com dificuldades para acender com o seu isqueiro[2]
a lenha molhada e formar uma pequena fogueira, aquecer a água, fazer e tomar o
mate ou cozinhar a feijoada, alimento seu e do pessoal empregado nesse difícil
e às vezes ingrato labor.
Embora isento de sofrer os
sustos, os perigos tais como os de um procela[3]
desencadeada no oceano, nem por isso o carreteiro é menos dispensado que o
nauta, de afrontá-la em terra de dia ou de noite. Enquanto aquele suporta-a no
convés do navio, trabalhando e vigiando sempre, o carreteiro, bem como o
tropeiro, tem que expor-se à chuva para trazer a boiada e animais em contínuo
pastoreio. Mal dele se os deixa escapar.
E tudo para fazer num mês a
viagem, que a cavalo seria feita em uma semana ou em menos tempo.
O recoveiro ou condutor de tropa
arreada (assim chamada a dos muares carregados de fardos) tem uma lida mais
afanosa, porém suas fadigas e cuidados são menos duradouros.
Antigamente, era por meio das
tropas arreadas que se fazia o transporte até os lugares para onde não havia
estrada de rodagem.
Esses lugares ainda são, em
partes, dos municípios de Passo Fundo, de Soledade e para Nonoaí.
Alguns fazendeiros, alguns
comerciantes abastados, adquiririam mais tarde, para sua condução pessoal,
carruagens, parelhas de animais adaptados e boleeiros[4],
podendo fazer viagem mais breve, mas nem por isso isenta de incômodos.
Posteriormente, mas só para determinadas cidades, estabeleceram-se carruagens
de posta, vulgarmente denominadas diligências. Nestas o boleeiro chefe, tem o
pomposo título de maioral. E, com efeito, assentado sobre a boléia chamada
também o pescante[5],
não só toca os animais e dá ordens aos boleeiros, mas também ordena e dispõe a
viagem, designando a hora e o local do almoço ou o do pouso noturno.
Entretanto, a vantagem de
abreviar um pouco esse trajeto converte-se em uma prejuízo se sucede quebrar-se
uma roda, um eixo ou mola principal do veículo.
Se isso dá-se em lugar
distanciado de artífices, que possam fazer logo um conserto, aí vão perdidos um
ou mais dias de demora e o acréscimo de despesas para o viajante.
Todos esses velhos modos de
viajar na campanha ainda subsistem, bem que limitados aos distritos distantes
das vias férreas.
Assim será, até que o Rio Grande
do Sul possa contar, como os Estados de São Paulo e Minas, com estradas de
ferro para quase todas as direções.
Naquele tempo não tínhamos, ao
menos em parte, o transporte suave e cômodo do vagão, vencendo, na rápida
velocidade de uma ou duas horas, a distância que, pelo velho e rotineiro
sistema, importava em dias de vagarosa viagem.”
REFERÊNCIA
SILVEIRA, Hemetério
José Velloso da. As Missões Orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre:
ERUS, 1979. Estante Rio-Grandense União de Seguros. (Primeira Edição: 1909) p.
149-150.
[1] Em linguagem gaúcha diz-se lonquear a operação, pelo
qual é tirado o pelo aderente ao couro do animal. Os bois nesse caso ficariam
lonqueados ou, em termo clássico, pelados.
[2] É assim chamado um pequeno tubo de metal ou de chifre,
contendo um pouco de algodão que recebendo as centelhas de uma pederneira,
ferida com um ferrinho denominado fuzil, dá o fogo para todos os misteres.
Alguns gaúchos ricos usão o isqueiro de prata.
[5] Assento do cocheiro.
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